Uma preta feminista na tecnologia

Ana Teixeira
8 min readApr 27, 2021

Penso, logo existo? Sim, existo. Sim, existimos. Vem comigo entender como está sendo o meu despertar como uma preta feminista na tecnologia.

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Começando do começo, sou uma pessoa negra com vários privilégios que tive (e tenho) acesso por conta da minha família e criação que recebi. Uma única frase que eu sei que pode gerar muita polêmica, mas está aqui e a realidade é essa. Minha família não é toda negra, com certeza somos misturados de europeus-caucasianos e africanos-escravizados — mais um pedaço polêmico e se você não percebeu os motivos, vamos aprender juntas. Com certeza, porque eu tenho buscado entender de onde eu vim — e quem sabe, isso me ajuda a entender mais para onde vou. Venho de uma criação que sempre me motiva a buscar independência e a igualdade entre gêneros (principalmente) — de forma bem sutil, meus pais me criaram para um mundo de igualdade (percebe que usei igualdade e não equidade) que ainda não existe, para uma utopia principalmente no contexto de Brasil. Vivi a maior parte do tempo da minha vida num ambiente onde a maioria das pessoas eram negras, mas eu nunca realmente enxerguei os desafios dessas pessoas — e os da minha família. Até um certo tempo eu me declarava como parda (e isso está bem porque se declarar negro é muito mais que só uma auto declaração) — o que descobri recentemente que não está de tudo errado. Hoje, tenho buscado entender mais sobre esse (meu) processo de despertar negro — também muito recentemente consegui dar um nome para isso: despertar negro.

Digo isso justamente porque apenas em 2011 — uma pessoa nascida negra em 1993 — realmente passei por uma situação em que fui chamada de negona e aí minha ficha caiu sobre a carga que carrego sem nem saber por ser negra e mulher, ah… e em tecnologia. Já adianto, não lembro se uma situação de racismo, minha primeira resposta e também resposta racista estrutural é não, foi usado de forma amigável. Mas hoje, com a vivência, experiência e pouco conhecimento que tenho construído e descontruído, eu diria que sim. Pelo simples fato de que na situação que eu escutei o termo quem o disse não era negro, não me conheci e nem comigo estava falando. Enfim, também polêmico e provavelmente rende outro texto.

Depois desse dia, que tenho algumas memórias muito escurecidas (ouvi a Ana Minuto usar esse termo e acho que vou aderir) e muito reais para mim, eu passei a enxergar as coisas de uma forma diferente — porque sou tratada diferente. A minha principal mudança foi fazer o teste do pescoço e continuo fazendo, faço do meu jeito: vejo quem está do meu lado, vejo quem está no mesmo papel que eu, vejo quem está no mesmo lugar de fala… se estou num estabelecimento, vejo quem me atende e por aí vai… é um teste sem fim para mim. Esse teste rápido passou a me alertar para possíveis riscos como pessoa negra e algumas vezes, me ajudou a pelo menos me situar e entender se eu precisava estar em alerta ou não.

Depois de algumas situações, eu decidi seguir na força do ódio (sim, isso mesmo) para conseguir manter meu foco no meu objetivo que era inicialmente: me formar em Ciência da Computação e conseguir um emprego na minha área profissional que pagasse no mínimo o maior valor de mensalidade que já tive que investir. Esse era o meu objetivo — hoje, consigo dividir outros e sonhar, mas por muito tempo esse foi meu único objetivo. Não sabia como iria conseguir, e não sabia o que eu estava fazendo, mas era meu único objetivo porque eu vi mulheres desistindo, eu vi pessoas negras desistindo, justamente por não terem os privilégios que eu tive. Procurei rede de apoio na área, ainda procuro e recomendo a todas — não sou nada sem uma rede de apoio. Mas numa das redes, também tive outra exposição: sou mulher negra. Foi a primeira vez que as duas palavras se juntaram “real oficial”.

Nessa rede de apoio e com outras mulheres diversas, eu me vi perto das primeiras mulheres negras — eu já mencionei aqui a importância da representatividade e da representação, mas eu mesma não tive minhas primeiras referências em tecnologia até pouco tempo atrás. Quando conheci essas mulheres, eu fiquei tão feliz, tão realizada que me vi em algum lugar além do mundo que eu estava — eu me perguntava onde elas estavam antes. Até que descobri que (eu sei, fui inocente — mas sabe o mundo utópico que citei antes? então) mulheres não são amigas apenas pelo fato de serem mulheres, pessoas negras não são amigas apenas pelo fato de serem negras e descobri também que existe um tal de “você não é negra o suficiente”. Isso tudo num dia só. Meu mundo caiu. Me vi feminista e que é diferente para mulher negra e vi que tenho uma jornada do feminismo negro para aprender. Além disso, vi que existem várias vertentes do feminismo e por aí vai. Muita coisa da minha adolescência fez sentido nesse dia.

Ah, ainda tinha um sonho para atingir. Foco para seguir, coloquei isso tudo na lista de ‘coisas para aprender’ e segui. Consegui atingir o objetivo de ter uma oportunidade no mercado de tecnologia e que pagava mais que minha maior mensalidade. Foram algumas sessões de terapia e 3 meses depois de formada, 2017. Eu estava vivendo minha melhor vida.

Fiz o teste do pescoço, como sempre, e percebi que atingi meu objetivo e tive acesso a uma parte da cidade, da cidade em que eu nasci que eu nunca tinha visto. Uma parte da cidade que as casas não tem muro, que os ônibus tem ar condicionado, que tem porteiros e manobristas, que os supermercados não tem sacola e aceitam animais… é tanta coisa, que eu me sentia muito especial e todo dia me perguntava: como pode?! Enfim, vida que segue né? Eu abri uma caixa dentro de mim que buscava meus valores como pessoa, minhas necessidades numa sociedade absurdamente louca. Fui demitida (outros motivos, não o gênero ou raça), e voltei ao meu objetivo inicial dessa vez, acrescentei o desafio de “quero ser programadora” — eu tinha experiência como programadora? não. Mas isso é outro texto.

Enfim, um novo despertar, aconteceu quando eu estava novamente vivendo minha vida do meu sonho ali de cima — num pedaço ainda mais branco da cidade. Tudo certo, fiz o teste do pescoço e decidi ficar onde estava e ver até onde conseguia chegar. Um belo dia, entre um código e outro, fui convidada a falar sobre diversidade pela primeira vez — 2019, um pedaço forte do meu despertar. Eu fiquei muito feliz, fiquei super empolgada, aceitei! Óbvio que aceitei! Mas quando fui lá falar sobre diversidade descobri que, na verdade, eu tinha mais perguntas que respostas e não tinha ninguém para me responder. Eu fiz as perguntas mais polêmicas sem nem saber do risco que elas poderiam me expor — coisas do tipo: ué cadê as outras mulheres negras? ou, cadê os homens negros?!

Sou o Chris, sou a amiga negra, sou o número que preenche diversidade da empresa. Foi mais assustador que gratificante porque bateu forte a dúvida se eu estava ali por um número ou pela minha capacidade técnica — mais terapia. Também nessa época, um lugar muito conhecido mundialmente, me ofertou uma oportunidade de emprego — eu não estava procurando e não estava desempregada. Mas fui convidada a me preparar para o processo seletivo porque eu era um unicórnio no mercado de trabalho. Sim, um unicórnio… fiquei feliz naquele dia — pelo termo raro usado e pela oportunidade. Mas um amigo negro me perguntou se eu entendi os outros lados de ser um unicórnio — ele foi educado em me mostrar qual o caminho que esse termo me trazia e qual a carga também imposta por isso. Comecei mais um despertar.

Ainda não tenho certeza onde estão as outras mulheres negras na tecnologia e já me vi em situações de não saber se o negro que está do meu lado sabe que ele é negro — ele, homem mesmo nesse caso. Hoje, 10 anos depois de iniciar na área de tecnologia, tenho visto mais mulheres negras fazendo o que eu faço e meu coração esquenta.

Ser uma mulher negra em tecnologia é bizarro, na minha inocência, eu sabia que seria difícil por ser mulher. Mas não tinha consciência que seria ainda mais complicado por ser negra. Eu não estava preparada para aceitar a luta e ainda não estou, mas agora, eu escolho. E sou teimosa quando escolhem por mim. Ainda acho insano ter que tocar nesse assunto, mas é necessário e ainda mais necessário estudar sobre isso. Estudar não significar perguntar seu amigo negro, significa procurar sobre os assuntos mesmo e ir atrás do pedaço que te falta.

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Eu tenho um sonho, de trabalhar em paz: por de trás da tela, conseguir criar soluções inovadores, soluções antirracistas, utilizando uma comunicação clara, direta, amigável e empática. Eu tenho um sonho de conseguir ser mulher e ser mulher negra por todo tempo do meu dia. Esse sonho é jornada, é despertar, muda o tempo todo e motiva — me motiva pelo menos.

Estou em mais uma fase do meu despertar. Tenho recebido uma avalanche de oportunidades buscando pessoas negras, no meu caso, mulheres negras. Confesso que estou muito feliz por isso porque para mim significa muito.

Além da felicidade, venho com uma avalanche de sentimentos, observações e julgamentos — coisas do tipo: onde essas empresas estavam quando eu estava procurando estágio há 10 anos atrás; ou onde essas oportunidades estavam quando eu busquei há 4 anos atrás fresca de um intercâmbio de longa duração; ou até estou sendo procurada pela minha experiência ou por ser mulher negra em tecnologia?! É mesmo uma avalanche. É um misto de situações que você não sabe que escolheu, mas que na verdade, você não escolheu. Foi escolhido para você e só você, no seu despertar, pode encontrar o seu jeito de sair do que foi escolhido para você como mulher negra. São pensamentos que vão embora e voltam em questões de minutos e o que me motiva a continuar é justamente ser quem eu sou: eu não vou deixar de ser negra e nem de ser mulher, essa sou eu e se agora, tenho um espaço por ser quem eu sou: que seja. Mas tenha consciência que, se você me der o espaço, eu vou trazer mais de nós e se você não gosta de nós — você que lute.

Você conhece uma pessoa negra que precisa de um espaço para conversar? Compartilha esse link com ela e vamos conversar!

Minha imagem de capa no Linkedin — porque eu tenho um sonho e ele envolve tecnologia, qualidade de vida e diversidade além de muitas mulheres negras juntas!

Alguns alertas importantes — ter uma amiga negra não te faz antirracista, fazer o teste do pescoço apenas por fazer não te faz antirracista, trazer UMA profissional mulher negra para sua empresa não te traz um ambiente de trabalho diverso e não-tóxico. Entende?

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